
1998 Art Museum of Americas
Arquivos da Natureza - Whashington- USA
NAIR KREMER – A SUBVERSÃO E A EXPANSÃO DA HISTÓRIA
Por Kátia Canton
Com seus arquivos interativos, o que a artista nos propõe é um grande jogo sobre a memória, as heranças históricas, o sentido das lembranças. Nos seus 27 anos de carreira, Nair Kremer (São Paulo, 1938) nunca se interessou pela produção de uma arte cuja inspiração se ligava aos projetos modernistas de síntese, abstração e busca de uma transcendência desligada do real.
Ao contrário, a artista sempre se comprometeu com as condições existenciais do ser humano, suas metamorfoses, apresentadas, revividas e comentadas através da criação de instalações que justapõem objetos de memória, combinando história e vivências pessoais. Suas obras são coletas sinceras, em que a experiência humana é materializada através de uma sensibilidade mutante, sutil, feminina.
A arte de Nair Kremer, profundamente ligada a questões sociais e culturais e reforçada por seus deslocamentos de vida entre Brasil e Israel, assume heranças múltiplas. De um lado, toma corpo através do legado experimental, dos anos 60, encabeçado pela obra e pelo pensamento do artista carioca Hélio Oiticica, com seus parangolés, sua arte viva e interativa, suas improvisações e permissividades construídas diretamente a partir do cotidiano popular brasileiro.
Kremer também se influenciou por sua vivência em um kibutz israelense, entre 1961 e 1985, alimentada pelas idéias socialistas e pela atitude do artista perante o mundo de questionar e se libertar de regras pré-estabelecidas, levantar as peles dos papéis sociais, expor contradições.
A artista ainda se liga ao surrealismo, em sua valorização do acaso, e à tradição da arte pop norte-americana, particularmente às assemblages de Robert Rauschenberg, com suas apropriações fragmentárias de imagens do cotidiano, justapostas com a liberdade e a volúpia de quem busca novas e originais combinações para os traçados da vivência humana.
Em Nair Kremer, a chave para acessar esse mapeamento de influências é sempre única: o significado. Ou melhor, o re-significado, já que a artista dirige-se a todo e qualquer conceito estabelecido com o consistente e obstinado propósito de jogar, provocar, subverter e recombinar símbolos, idéias e objetos.
Assim, no processo de recriar um jogo de possibilidades que parecem infinitas, Kremer incorpora questões pungentes sobre a condição humana, que expandem o conceito de arte e dissolvem, de maneira definitiva, as dicotomias estabelecidas pela arte modernista, como abstração e figuração, formalismo e expressionismo, arte e não-arte.
Em suas instalações performáticas, em que velhos arquivos de documentos se transvestem de objetos largados no meio da rua, convidando à observação e à manipulação por parte de transeuntes, a artista configura preciosas noções sobre memória e significado.
Na obra recente, dezesseis arquivos são revestidos com terra dura, ressecada e rachada, remetendo à secura crônica e trágica que assola o nordeste brasileiro. Transformando-os em verdadeiros diários recombinantes de sensações, os arquivos têm suas gavetas entreabertas, contendo, por dentro, estímulos táteis que aludem aos elementos terra, água, ar e fogo.
Algumas gavetas são recheadas por “estranhezas”, por pequenos objetos do mar, que podem tomar corpo como barquinhos de papel, feitos por crianças, bonecas-sereias, punhados de sal e areia, caramujos. Nesse contraponto entre o dentro e o fora, entre a terra seca e a iconografia que remete à água do mar, a artista estabelece um rastro que conecta noções de aridez e fertilidade.
Em outras gavetas, a artista coloca a imagem simbólica da mulher pioneira, a matriarca judaica, que compõe o imaginário da artista desde o início de sua trajetória. Trata-se de uma figura feminina indefinida, mas transbordante de significado, que Kremer apenas sugere, num constante e despersonalizado recorte, sujeito, portanto, a um amplo e ressonante território de interpretações.
Gavetas seguintes contêm rizomas, brotos que também mapeiam a constelação de símbolos usados pela artista. Orgânicos e, portanto, em mutação, os rizomas representam um potencial de movimento entre semente e planta, vida e morte, um meio do caminho no percurso de concretização criativa.
No universo de seus excêntricos arquivos, em que gavetas se abrem e se fecham, convidando a um vasculhamento e uma recombinação dos sentidos, o público também encontrará cinzas. Testemunhos de memórias antigas e subvertidas, as cinzas anunciam um processo de purificação e transmutação pelo fogo. Em sua simples apresentação, as cinzas encobrem uma forma simbólica e ambiciosa de revisar a história, destruindo fatos amargos e de injustiça social através de uma cremação, profetizando, posteriormente, a construção de uma nova vida.
Exímia manipuladora de mitos, Nair Kremer constrói, assim, um jogo de múltiplos objetos e possibilidades simbólicas. Abre suas próprias gavetas, como num diário de sensibilidades, convida transeuntes anônimos para que participem de seu território minado de intimismos, transforma-os em inevitáveis cúmplices na recriação da história.
No processo, a artista retira o arquivo de seu universo técnico do trabalho, em que o acúmulo funcional levaria a algum tipo de conhecimento, e mergulha-o no caos. Nesse novo tipo de receptáculo, a soma de elementos não conduz a qualquer resolução.
O arquivo, com sua promessa sacralizada de ordem, tem seu discurso radicalmente subvertido. A artista transforma-o num campo de transmutação, alterando seus conteúdos, que são constantemente rearranjados pelo movimento de acaso das manipulações alheias.
Ao criar esse tipo de instalação, Nair Kremer está irremediavelmente alterando a história. Ou melhor, criando uma nova. Uma história em que a seca convive e se alivia nas profundezas do mar; em que a sutileza do rizoma faz brotar todas as coisas e a figura feminina, poderosa e onipresente, brinca com conchas, barquinhos de papel e sereias.
Katia Canton é PhD em Artes pela Universidade de Nova York, crítica e curadora de arte, é docente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.