2012 Museu de Arte Sacra
Contrapontos - São Paulo - Brasil
Uma instalação interativa com serigrafias de grande formato expostas em espaço público. As pessoas (diversos públicos) participavam por meio de textos e questionários em quatro línguas.
Contrapontos – Arte Contemporânea no Museu de Arte Sacra
Curadoria Nair Kremer
“Qual o propósito de uma arte cujo exercício não me transforma?”
Paul Valèry
No século XV, o pintor Piero Della Francesca já dizia que “mais importante que a pintura de um arcipreste é a relação dessa pintura com outra ou com outros elementos”. As relações entre obras, espaços e diferentes objetos ou mídias continua presente, e, aliás, ganha relevância em propostas cada vez mais ousadas na arte contemporânea.
Ao conhecer o acervo do Museu de Arte Sacra como conselheira, comecei a esboçar uma ideia desafiadora: contrapor aos objetos barrocos e outros de cada uma das coleções, as propostas mais atuais no circuito das artes. A inserção de tal proposta na programação do Museu de Arte Sacra tem o intuito de promover uma experiência nova ao público que já o visita e espera-se também atrair outros tipos de público que ainda não tiveram contato com as especificidades deste acervo.
Cada artista convidado também se viu diante de um desafio: escolher um espaço a ser trabalhado em sua poética visual, levando em conta as necessidades técnicas de preservação deste patrimônio. Do contato com a coleção e com a arquitetura do prédio bicentenário nasceram propostas em linguagens e suportes diversos, ora destacando a iconografia, ora redimensionando o olhar sobre a própria arquitetura. Os artistas e suas obras tornam-se elementos novos que ressignificam esse espaço museológico e ampliam o diálogo com o público.
Outro aspecto contemporâneo presente nesta proposta é a participação de “não artistas” com trabalhos de arte. Nesse caso, destaca-se o fato de o Núcleo de Arte-Educação do museu ter sido um dos ilustres convidados a realizar sua própria intervenção. O convite destaca a importância do arte-educador na relação entre diferentes públicos e diferentes acervos.
Na sala da Ourivesaria Sacra (cofre) Monique Allain, com sua obra Réquiem, coloca em questão os valores tão bem guardados neste local, e o fato de que um dia irão desaparecer. Na mesma sala Alex Flemming insere outras vozes dos discursos religiosos na figura de Iemanjá, enquanto, na sala Benedito Calixto, Guto Lacaz comenta a pintura e sua reprodução – enquanto imagem normal, tridimensional e espectral, em um jogo óptico. Ali também, Geórgia Kyriakakis, com sua obra Empeno à tona, explora e entrecruza diferentes sentidos dos termos exposição, revelação e deformação. Ao interferir na disposição das cadeiras convida o público à instabilidade revelada em situações de desajuste e desequilíbrio, potencialmente ativas nas relações humanas, sociais e políticas. .
Com destaques simbólicos e interativos do Jardim do Claustro, Roberta Segura nos convida a refletir sobre o estado de clausura voluntária das monjas, com imagens da casa de uma moradora de rua que, devido a sua situação financeira, social e emocional, se encontra involuntariamente em um estado de clausura.
Luiz Hermano inspira-se em um museu da Turquia e aciona no visitante o reconhecimento da arte bizantina, mas em um tempo novo, com novos materiais.
Em uma das salas mais contemplativas, onde está a imagem de Nossa Senhora da Luz, Silvia Mharques constrói uma máquina de referências filosóficas e coloca em pauta nossa relação com “a luz do conhecimento”.
Na sala Técnica construtiva (taipa), a instalação A flor da pele, de Renata Barros, mostra a relação entre corpo e materialidade, em uma referência ao Santo Sudário. Neste trabalho, a tonalidade da pele, com o uso de látex e vídeo, torna-se suporte para representação do sujeito – sagrado ou não.
Na área externa, junto aos profetas, o Núcleo de Arte-Educação do MAS participa com a instalação interativa Salvaguarda. Este trabalho, já no próprio título, problematiza uma das funções do museu e convida o público a reconhecer seu papel social.
A polifonia vem também em performances como Sagrado Território, de Miriam Dascal e Fabio Villardi, e na apresentação musical Fabuloso adeus/ Mortal loucura, do grupo Pato Preto.
Ao enfrentar riscos e buscar soluções, o empenho da curadoria é estimular novas relações com o acervo e com o próprio conceito de museu na contemporaneidade. Este é nosso convite ao público, para que ele também faça seus próprios contrapontos.
Nair Kremer
Autores tão diferentes quanto Theodor Adorno, Shoshana Felman e Eric Hobsbawn compreendem o século XX como a “Era das Catástrofes”.
Muitos ensaios contemporâneos sobre o assunto vão na direção de extrair da experiência e dos estudos sobre o Holocausto ou Shoá uma perspectiva para analisar o mundo contemporâneo, estrutural e cotidianamente marcado pela violência.
Educadores (não-artistas) e a criação em arte.
De setembro a outubro de 2012, o Museu de Arte Sacra de São Paulo recebeu a exposição Contrapontos – arte contemporânea em terreno barroco. Porém, o projeto que a princípio foi concebido como “uma intervenção urbana minha dentro do Museu de Arte Sacra”, assumiu novos sentidos e desdobramentos. Creio que o mais importante deles está diretamente relacionado ao tema deste simpósio: a educação em museus, ao convidar educadores (não-artistas) para fazer um trabalho de arte.
Primeiro, vale frisar que os convidei a expor ao lado de artistas renomados: Alex Flemming, Guto Lacaz, Luiz Hermano, Georgia Kyriakakis, Monique Allain, Renata Barros, Roberta Segura e Silvia Mharques. As intervenções, como comentou o curador do Museu Lasar Segall, Jorge Schwartz : “realçaram a coleção”, colocando a delicadeza “fio condutor da exposição”. Gostei de ouvir isso, pois a ideia de contraponto não precisa necessariamente ser um confronto violento. Ou seja, não precisa ter “a histeria” que muitas vezes se percebe na arte contemporânea.
Agora sei de algo que fez toda a diferença: a curadoria se sobrepôs à minha intenção inicial, mas foi gratificante aprender com o trabalho de curadoria e agir agregando artistas e não-artistas, no caso, falo especialmente desse convite aos educadores do museu para que participassem com uma intervenção coletiva. Não foi uma iniciativa aleatória. Há um histórico que precisa ser registrado, comentado, discutido.
Quando cheguei, e vi o educativo trabalhando, a proposta de uma formação em arte contemporânea tomou corpo e foi bem diferente de uma “capacitação”. Foi ao me aproximar e ver o quanto eles eram bons no que faziam, que senti vontade de convidá-los a participar indo além dos limites tradicionais. Foi interessante ver que a primeira proposta apresentada pelos educadores tinha mais o tom da mediação, mas depois, com mais algumas conversas, e com o projeto Salvaguarda eles trouxeram ao público essa atitude de “não-artistas” fazendo arte. Com foco nas palavras de Joseph Beuys “qualquer pessoa pode ser um artista”, registro, então, o que foi a intervenção Salvaguarda e o conjunto das atividades do Educativo na exposição Contrapontos e que consequências ela trouxe ou pode trazer à relação com o público.
O coordenador do educativo, Rodolfo Yamamoto, chegou a comentar os impactos dessa ação em “um núcleo de arte-educação que trabalha constantemente com o público para promover o direito à criação cultural”. Segundo ele, “no trabalho de parte deles há algo diferente. Há mais confiança e ambição, uma vontade de confrontar mais possibilidades. Inclusive a forma de lidar com a exposição de longa duração não é a mesma. Até a rotina ganhou fôlego com o novo ar.” Rodolfo lembrou bem que “assim como o medo, a criatividade também pode ser contagiosa”. E foi por isso que conseguiram “articular uma proposta de grupo que contemplasse os indivíduos, sem virar um mosaico desconexo e ao mesmo tempo sem deixar que as singularidades fossem soterradas no peso do coletivo. Parecia um microcosmo da sociedade.”
O Núcleo de Arte-Educação do MAS participou com a instalação interativa Salvaguarda. Este trabalho, já no próprio título, problematizava uma das funções do museu e convidava o público a reconhecer seu papel social. Consistia em 19 guarda-chuvas customizados colocados sobre as réplicas dos profetas de Aleijadinho, na entrada do museu.
Como artista, curadora e como arte-educadora, quero destacar também a importância não somente do Educativo, mas do protagonismo jovem de modo geral. O espaço dedicado à produção dos jovens pode ser mais bem aproveitado nos museus de todo o Brasil. Digo isso, porque presenciei outros trabalhos, como o departamento dedicado à juventude em outros museus do mundo, e gostaria muito que essa nossa experiência tão positiva encontrasse espaço para a continuidade.
São Paulo, 3 de dezembro de 2012.
Nair Kremer
E esses trabalhos pautam-se pela convicção de que a Shoá transformou o modo de ação e de reflexão dos precários homens do século XX. Isso porque localizam neste evento o lugar da falência dos ideais iluministas e da desconfiança perante sistemas explicativos totalizadores.
Esses pensadores retomam a convicção do poeta Paul Celan de que ninguém testemunha a testemunha, reafirmando o princípio de que ninguém pode falar em seu nome. Desse ponto de vista, formulam-se as questões que atravessam a contemporaneidade: é possível representar o mal absoluto?
Como representar a barbárie sem permitir a fruição estética? Como aproximar-se do trauma, individual e/ou coletivo, que está na origem do testemunho? Como descrever a angústia do testemunho que afirma com igual intensidade tanto a impossibilidade de narrar sua vivência como a necessidade de fazê-lo?
Passadas três gerações do extermínio em massa que foi a Segunda Guerra Mundial, ficam as perguntas:
É possível lembrar do ocorrido, quando os testemunhos do ocorrido estão quase todos mortos?
A segunda e terceira gerações pós Shoá podem/devem lembrar de um acontecimento que não experimentaram?
É possível lembrá-lo de outras formas?
É preciso lembrar ou esquecer?
Nair Kremer